Por Ubaldo Marques Porto Filho
A Associação Germânia da Bahia, fundada em 1873 e mais conhecida como Clube Alemão, encontrava-se instalada numa área de 9.496 metros quadrados, em região nobre da cidade, com frente para o início do Corredor da Vitória: Avenida Sete de Setembro 212, entre as atuais sedes do Icba – Instituto Cultural Brasil Alemanha (antigo 210) e do Acbeu – Instituto Cultural Brasil-Estados Unidos (antigo 214). A parte do fundo do Clube Inglês, com frente voltada para a Praça Dois de Julho (Campo Grande) encostava no terreno do Clube Alemão.
A sede não era própria. Poucas pessoas sabiam que se tratava de um imóvel alugado. No testamento de Francisco Fernandes de Mesquita, um rico comerciante nascido no Rio Grande do Sul e falecido em Salvador no dia 18 de fevereiro de 1895, o imóvel (casa e roça, conforme o registro) já aparece como alugado ao Clube Germânia. Ele também deixou escrito, para o filho Domingos Fernandes de Mesquita, que teve a posse na condição de usufrutuário, que o clube sempre deveria ter a preferência na renovação do aluguel. E continuou tendo após o falecimento de Domingos, ocorrido em 3 de dezembro de 1933, quando sua filha, Júlia Mesquita Marques Porto, tornou-se dona do imóvel. Segundo ela, os alemães eram excelentes inquilinos, pagadores pontuais dos aluguéis.
Ao longo do tempo, os alemães fizeram vultosos investimentos na propriedade que originalmente constava de um casarão residencial e vasta área arborizada. No palacete, realizaram obras para abrir salões e outras adaptações para o funcionamento de um clube social luxuosamente mobiliado. Na área externa, construíram um rinque para festas ao ar livre, uma quadra de tênis, uma quadra de basquete, um pavilhão para boliche (com choperia), o módulo do Colégio Alemão (para os filhos dos associados) e as instalações de um clube hípico, com cavalariça, sendo que a entrada e a saída dos animais era pelo bairro do Canela. O colégio e o boliche foram totalmente edificados com o uso de madeira de lei.
Era o maior e melhor aparelhado entre todos os clubes da Bahia. O prédio principal era separado da rua por um gradil de ferro com três portões e um jardim com palmeiras imperiais. Em sua fachada havia sete portas que se abriam para uma varanda comprida e estreita, provida de um parapeito. A entrada social ficava na lateral direita, com acesso por uma escada. O corpo principal do palacete, um pouco elevado em relação ao nível do jardim frontal, possuía um enorme salão de festas, bar-restaurante, salões de jogos, sala para reuniões, biblioteca e uma gigantesca e acolhedora varanda assoalhada no fundo, em nível superior ao terreno em declive e com vista elevada e panorâmica para jaqueiras, mangueiras, sapotizeiros, ingazeiros e outras árvores frutíferas. No subsolo, ficavam as instalações sanitárias, vestiários, os depósitos do bar-restaurante, do material esportivo, dos serviços gerais e as dependências dos empregados.
Como elo de integração da comunidade germânica, que também acolhia a pequena legião de suíços, o clube promovia festas tradicionais no calendário alemão, aniversários, consertos, palestras, sessões de cinema e outros eventos. Os alemães luteranos aí realizavam seus cultos religiosos. Para estreitar mais ainda a comunicação com os associados, o clube mantinha um jornal editado em alemão, o Deutscher Verein. Com o restabelecimento das relações diplomáticas do Brasil com a Alemanha, em 1936, o clube abrigou o Consulado na Bahia.
Enfim, tratava-se de um complexo social, esportivo, educacional e diplomático, sem igual em Salvador. Simbolizava o poder e a riqueza da colônia alemã na Bahia. Sua sede constituía-se em local de passagem obrigatória para personalidades e autoridades em trânsito por Salvador, que fossem de interesse da colônia germânica, onde eram recebidas com recepções requintadas.
O poderoso adido cultural da Embaixada da Alemanha e chefe dos nazistas no Brasil, Hans Henning von Cossel, foi um dos visitantes. Como fazia habitualmente nas visitas às colônias espalhadas pelo Brasil, Cossel citou em seu discurso uma frase do chefe da Organização do Partido Nacional Socialista no Exterior, Ernst Wilhelm von Bohle, que se constituía num recado direto do governo de Hitler e que criava mal-estar entre os alemães não filiados ao partido nazista, que se sentiam intimidados, ameaçados:
“Os alemães no exterior, que não querem ser Nacional-Socialista, considerando-se contudo alemães, só têm um nome: Traidores da Pátria”.
Com o ataque japonês à base americana de Pearl Habor e a pressão dos Estados Unidos para o Brasil entrar na guerra, a diretoria do Clube Alemão resolveu desativar o clube antes mesmo do Ministério da Justiça e Negócios Interiores determinar o fechamento das organizações alemãs no Brasil, como consequência do rompimento das relações diplomáticas com os países do Eixo, em 28 de janeiro de 1942.
Com o assentimento da dona do imóvel, o aluguel foi transferido para o Esporte Clube Vitória. Mas a permanência do Vitória no antigo Clube Alemão foi curta, uma vez que o comandante da 6ª Região Militar, general Dermeval Peixoto, botou o Vitória para fora no dia 10 de abril de 1943, e colocou para dentro o Círculo Militar do Exército (Cirex), clube social que aí passou a realizar seus encontros sociais e festividades.
Em ofício datado do dia 23, do mesmo mês e ano, o comandante da 6ª Região Militar comunicou ao esposo da proprietária, Júlio Adalberto Marques Porto, o confisco da propriedade. A dona do imóvel, Júlia Mesquita Marques Porto, teve de engolir calada a usurpação promovida pelo Exército, pois se vivia num regime ditatorial e em clima de guerra. Somente após o término do conflito mundial e com a redemocratização do país, foi que houve o pedido para a devolução do imóvel, num processo administrativo cozinhado e depois negado pelo comando da 6ª Região Militar, que tentou inclusive a desapropriação do imóvel por um preço vil.
O coronel-médico Emmanuel Marques Porto, que havia comandado o Serviço de Saúde da FEB na Itália, orientou o médico Enódio Mesquita Marques Porto, filho da proprietária, que residia no Rio de Janeiro, a entrar primeiramente com um pedido judicial na Bahia e, logo depois, com uma solicitação direta no Ministério da Guerra, onde o parente militar poderia ajudar a família a reaver o patrimônio. E ajudou, levando o caso ao conhecimento do ministro da Guerra, general Canrobert Pereira da Costa.
Em 1948, o Ministério da Guerra determinou a imediata restituição do imóvel ao seu legítimo dono. Foi devolvido, depois de saqueado pelos dirigentes do Cirex, que levaram tudo, dos lustres de cristais às chaves das portas. Inclusive, para roubarem a madeira, desmontaram o belíssimo bar que havia sido construído pelos alemães. O clube da 6ª Região Militar entrou num imóvel ricamente mobiliado e saiu deixando-o absolutamente sem nada.
Mesmo assim, somente foi devolvido pela 6ª Região Militar sob a condição da família Marques Porto utilizá-lo como residência. Cinco pessoas (o casal Júlio e Júlia e suas filhas Indira, Oréade e Yvette) foram obrigadas a morar num ex-clube. Em 1954, a senhora Júlia Mesquita Marques Porto, já viúva, vendeu a parte da frente da propriedade, onde ficava o palacete que havia abrigado a sede do Clube Alemão, ao Banco Hipotecário Lar Brasileiro, que aí fez surgir dois prédios, o Hotel Plaza e o Edifício Manoel Vitorino. A parte do fundo tinha sido desapropriada pelo Estado, para a passagem da atual Avenida Reitor Miguel Calmon (Vale do Canela).
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Esse texto encontra-se nas páginas 58 a 61do livro
‘O Submarino que Mudou o Curso da História no Brasil’,
NOTA:
Ubaldo Marques Porto Filho, neto de Júlia Mesquita Marques Porto. Nascido em 5 de janeiro de 1945, tem lembranças bem vivas do palacete, pois passou três veraneios (1952/53/54) no casarão do antigo Clube Alemão. Nessa época, seus pais residiam na cidade de Jequié, Bahia.
Vista parcial da área do Clube Alemão de Salvador, no início do Corredor da Vitória, bem próximo ao Campo Grande, em foto de 1925. (Acervo da Família Marques Porto)
Cartão postal com a fachada do Clube Alemão de Salvador, na Avenida Sete de Setembro 212, trecho da Vitória. (Acervo da Família Marques Porto).
Fachada do palacete que serviu de sede para o Clube Alemão, o Esporte Clube Vitória e o Círculo Militar do Exército, em foto de 1952. (Acervo da Família Marques Porto).
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